"Certos pavões escondem de todos os olhos a sua cauda - chamando a isso o seu orgulho." F. Nietzsche

17.11.10

Um sonho

Não tenho certeza se a vida é um sonho ou se é outra coisa diferente. Há noites (ou serão dias?) em que ele aparece claríssimo para mim.

"É manhã brilhante e cheia de silêncio. Abro os olhos. ESTRANHO. Sinto tudo balançar. O ruído cadenciado de ondas do mar me revela que estou dentro de um navio, no camarote de uma daquelas naus do século XVIII. Invade-me a sensação de retorno: à séculos passados, à minha infância, ou à minha origem mais íntima.
Subo para o convés. Sou cercada por um imenso silêncio, maior que o barulho calmo das ondas que batem a bombordo, muito maior que o ranger das cordas, das amarras e do que o planejar das velas.
O silêncio, sinto-o, parte de mim. Nada escuto a não ser o pulsar de minha solidão. Estou irremediavelmente ali, diante de um mundo que nada tem a ver comigo. Nada me é familiar, nem o mar com sua majestade quase aterrorizante. Nem a falta de horizontes....
Recupero-me do susto. Esfrego meus olhos: não há terra e nada vejo em qualquer dos lados. Essa espécie de gelatina verde sobre a qual me situo, sinto-a como prolongamento de meus músculos, ainda moles de sono. São de gelatina os meus pensamentos, completamente inseguros.
Súbita, deparo-me com uma tarefa urgente. E meu barco: nele vou traçar meu destino. Com ele vou conquistar meu porto. Com ele vou saborear cada gota do meu viver.
Sinto-me febril. Corro até a proa, pego no leme, subo até o topo do mastro, confiro a âncora, invado porões e paióis. Nada daquilo eu escolhi, nem seu porte, nem sua cor, nem seus apetrechos, nem a profissão que de agora em diante será minha. Sei apenas que tomar posse daquilo tudo e dar-lhe um rumo se imõe como uma tarefa só minha. Insubistituível. Sinto medo? Não sei. Acho que é um sentimento doloroso e nobre ao mesmo tempo. De agora em diante, tudo dependerá só de mim.
Acima de mim o céu de um Sol que nasce manso e invernoso. Para onde ir? Não há regras. Nem mesmo jogos. Tudo precisa ser definido.
PSSST! Ouço vozes... muitas vozes. Parece que vem lá do porão. Largo o barco à deriva. Corro até os porões.
Lá dentro uma confusão: caixas, tonéis, fardos, pilhas de sacos de todas as formas e cores, livros e cores sombrias.
Ao fim de um longo corredor, no meio da penumbra, vejo rostos. Encravados nesses rostos, olhos me transmitem ondas de sentimentos que tento, mas não consigo dizer o que são. No entanto eu os sinto como se fossem meus.
Formas humanas são intraduzíveis, mas claras para mim, como o sol lá de fora.
Esses olhos me mostram quem eu sou. Vendo-me refletidos neles, sinto-me existindo melhor: com mais nitidez. 'Vem-me, logo existo', penso aliviada. Começo a entender melhor quem sou. Aqueles pequenos espelhos de seus rostos não sou eu, mas me revelam meus ângulos brilhantes, obscuros, esfumaçados. O olhar dos outros começa a fazer parte de minha vida e de meu destino. Meu rumo já não será só meu. Responsável sou: por mim e pelo outro.
Na frente daqueles outros como eu, naquele navio que será o corpo de todos nós, começo a pensar em voz alta: 'Agora sou tão responsável por este navio como se o tivesse inventado e construído. Não pedi para estar aqui, nem mesmo para nascer. Não pedi para ter esse sonho, mas vou sonhá-lo como se livremente o tivesse escolhido, até que se materialize em realidade'
Voltei ao convés ainda artudida pelas imagens, olhares e vozes do porão. Sinto o quanto aquelas vidas estão junto comigo. Estarão ainda presas? Estarão vivos, ou já se libertaram? Por que não sobem quando os chamo? O que os prende?
Agora preciso resolver sozinha, sem pontos e apoio, sem guias e, angustiosamente em nome de todos.
Cada um de meus atos põe em jogo o universo, seu sentido e o lugar de nós nele. Senti quase um pavor. Mas como poderia deixar de senti-lo, se ninguém pode fazer os valores para mim, mas eu mesmo que construo a cada ato autêntico de minha vida? O barco todo é sacudido por forte vento. Não sonho mais. Tudo balança. Seguro firme o timão. A viagem começou"
Meio suada, meio angustiada, acordo com sobressalto. Sento-me em minha cama. O chão é firme, mas sinto-me balançando. Um gosto estranho de sal marino me vem à boca, amarga de medo, um gosto e orgulho e otimismo.
Livremente construí o meu sonho...



********texto de Fernando José de Almeida

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